Além de proporcionar alternativas para diversificar o patrimônio, o mercado internacional tem sido cada vez mais utilizado por brasileiros para o planejamento sucessório. Uma das alternativas que se destacam é o trust, que possibilita a transmissão dos bens para os beneficiários sem que seja preciso fazer um inventário.
Traduzida para o português, a palavra remete a “confiança” ou “segurança”, e é justamente essa a ideia desse tipo de gestão patrimonial. Embora já exista há tempos em outros países, o trust ainda não tem uma legislação própria no Brasil.
No entanto, se aprovado, o Projeto de Lei 4.173/2023 promete trazer luz ao tema, o que poderá ser um estímulo para que mais famílias procurem essa estrutura para facilitar e tornar menos custosos os processos de sucessão patrimonial.
Para que alcance o seu objetivo, o trust precisa ter normas muito claras em relação à forma e aos poderes de gestão. Por isso, o InfoMoney preparou este guia com detalhes importantes sobre finalidade, funcionamento e cuidados necessários na hora de montar essa estratégia de gestão do patrimônio. Confira:
O que é trust?
O trust é uma estrutura de planejamento patrimonial e sucessório na qual os bens são administrados por um terceiro em favor de um ou mais beneficiários. Em outras palavras, o proprietário contrata um serviço de gestão dos seus bens até que os familiares e/ou beneficiários os recebam no futuro.
Esse formato surgiu na Inglaterra ainda na época das Cruzadas. Quando proprietários de terras precisavam partir para a guerra, deixavam suas terras sob o cuidado de um cavaleiro nomeado pelo rei, que cuidava do patrimônio em benefício do proprietário e de sua família.
Durante o período em que administrava o patrimônio, esse cavaleiro cuidava dos animais, plantava, colhia, comercializava a produção e distribuía o fruto desse trabalho à família do proprietário, até que ele retornasse para casa ou que sua família herdasse os bens.
Com o tempo, a estrutura foi aperfeiçoada, e cada participante teve o seu papel definido legalmente.
Para que servem os trusts?
Os trusts são um instrumento de gestão patrimonial e planejamento sucessório, pois organizam os bens para que os beneficiários possam utilizá-los no futuro sem a necessidade de um inventário.
Por sua vez, o proprietário do patrimônio pode decidir que tipo de acesso os beneficiários terão a esses bens. Por exemplo, pode definir que, a partir de determinada idade, seus filhos receberão imóveis, aplicações financeiras e outros ativos aos quais têm direito como herdeiros. Ou também pode determinar que somente os proventos gerados por esses bens sejam distribuídos, como aluguéis, dividendos ou outras formas de renda passiva.
Nesse último caso, o objetivo da família é perpetuar o patrimônio para futuras gerações, o que pode ser feito por meio de um trust. Essa flexibilidade é uma das principais características e vantagens da estrutura, pois o dono dos bens pode transferi-los aos beneficiários da forma que escolher.
Como funciona o trust?
Para entender como funciona essa forma de gestão patrimonial, é preciso conhecer alguns conceitos jurídicos peculiares do formato. Acompanhe a seguir:
Componentes de um trust
Para que possa existir, um trust precisa de três figuras obrigatórias: o settlor (detentor do patrimônio), o trustee (administrador) e o beneficiário.
O settlor é quem determina as regras para a transferência de seus bens na etapa inicial de formação do trust. No ato de constituição, ele deve explicitar detalhadamente a estratégia que tem em mente, ou seja, tudo o que quer e o que não quer que seja feito na gestão dos bens. Por isso, essa fase costuma ser bastante demorada, pois o gestor irá basear o seu trabalho em todas as diretrizes definidas nesse documento.
Já o trustee – que pode ser uma pessoa física ou jurídica – é quem administra os bens em favor dos beneficiários, agindo igualmente em nome de todos. É sua responsabilidade, por exemplo, encontrar as melhores alternativas para rentabilizar o patrimônio, diversificando os ativos em linha com as diretrizes do ato de constituição. Além disso, o trustee também precisa prestar contas sobre o seu trabalho e não pode delegar a terceiros a responsabilidade de gerir o patrimônio do trust.
Por fim, o beneficiário é quem irá usufruir dos bens aportados no trust ou dos resultados provenientes desses bens.
Outra figura que pode compor a estrutura é o protector, cuja função é mitigar possíveis divergências que possam surgir entre a gestão do trust e o que foi definido no ato de constituição. Em outras palavras, o seu trabalho é assegurar que o trustee esteja realmente administrando o patrimônio em prol dos beneficiários.
Embora essa figura não seja obrigatória, ela é importante pois o contato entre settler e trustee acontece mais frequentemente na constituição do trust. Dessa forma, o protector acaba sendo um facilitador no sentido de preservar as regras, tendo inclusive poderes de veto em determinadas decisões do gestor.
Letter of wishes
A letter of wishes (carta de desejos) é um documento opcional, que pode ser utilizado pelo settlor para orientar os atos de gestão do trustee.
Na prática, ela funciona como uma espécie de manual de instruções, que complementa as normas determinadas no ato de constituição do trust. Nesse documento, o detentor dos bens pode estabelecer condições para que os beneficiários recebam o patrimônio, como idade ou valores destinados a cada um.
Outra utilidade da carta de desejos é ajudar a interpretar determinadas situações descritas no ato de constituição que possam gerar dúvidas. Por exemplo, imagine que um trust tenha sido criado especificamente para custear a formação dos filhos no exterior, e que um deles deseje utilizar os recursos para fazer um curso de idiomas de seis meses lá fora. Nessa situação, se for de sua vontade, o settler pode deixar claro no documento que o benefício se destina exclusivamente à graduação, por exemplo.
Tipos de trust
O trust pode ser constituído de forma revogável ou irrevogável. No primeiro caso, o settlor transfere os seus bens à estrutura, mas pode, a qualquer momento, voltar atrás e reaver o patrimônio para si em vida.
Na forma revogável, caso o dono dos bens venha a falecer, existem duas possibilidades. A que ocorre com mais frequência é a estrutura se tornar irrevogável e o trustee continuar fazendo a gestão do patrimônio de acordo com o ato de constituição.
A segunda possibilidade é o trust ser encerrado, e o patrimônio, transferido para os beneficiários. Na prática, isso acaba sendo menos comum, justamente porque o trust normalmente é utilizado para garantir que gerações futuras tenham acesso ao patrimônio familiar. Logo, se a estrutura se extingue com a morte do settler, acaba não fazendo sentido optar por esse tipo de gestão patrimonial.
Já no formato irrevogável, o detentor do patrimônio não tem o direito de desistir do trust. Isso significa que, no momento em que a estrutura é formada, ele deixa de ser proprietário dos bens que transferiu.
Em um processo sucessório, a impossibilidade de revogação dá mais segurança aos beneficiários, pois a figura do settlor não corre o risco de ser confundida com o trust. Por exemplo, se o dono dos bens for executado na pessoa física, somente o patrimônio que estiver em seu nome poderá ser alcançado. Isso porque tudo o que foi transferido para o trust de forma irrevogável não lhe pertence mais e, por isso, está protegido de eventual ação judicial.
Extinção do trust
Quando se fala em trust, é comum que haja certa confusão entre os conceitos de revogação e extinção.
A possibilidade de revogação dessa estrutura depende da vontade do detentor do patrimônio. No entanto, a sua extinção acontece quando o trustee deseja se desligar da administração dos bens. Se isso ocorrer e não houver nenhuma determinação de substituição do gestor no ato de constituição, o trust será extinto.
É perfeitamente compreensível que se possa extinguir a estrutura em determinados casos. Afinal, o administrador – seja ele uma pessoa física ou instituição financeira – pode entender que a prestação dos serviços não esteja mais valendo a pena.
Prevendo essa hipótese, existe uma estratégia na qual o settlor é colocado como primeiro beneficiário do trust no caso de extinção. Dessa forma, o patrimônio passa primeiro para ele, para que decida se vai constituir um novo trust, ou se fará a distribuição aos beneficiários.
Poderes de gestão
A flexibilidade do trust se estende também aos poderes de gestão, que podem ser discricionários ou não discricionários.
No primeiro caso, o trustee tem amplos poderes para administrar o patrimônio da forma como entender. Ele pode, por exemplo, estabelecer para quem pagará determinados valores, quanto e como cada beneficiário receberá.
Já no formato não discricionário (mais usual na prática), o settlor reduz o grau de autonomia do gestor, determinando limites para a sua atuação no ato de constituição. Como vimos, esse documento deve trazer de forma muito clara e detalhada tudo o que o trustee pode ou não fazer. Além de guiar a gestão, esse detalhamento serve também para determinar o preço do trabalho do trustee. Quanto mais complexas forem as tarefas do gestor, mais sofisticado precisará ser o seu trabalho e, consequentemente, maior será o custo da estrutura.
Tributação do trust
O trust é uma modalidade oriunda de países anglo-saxões (como a Inglaterra, por exemplo), e seu formato não tem paralelo em nações como o Brasil, que seguem o direito romano-germânico. Por isso, o seu regime jurídico – e mais especificamente, a sua tributação – ainda é incipiente por aqui, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, como explica o especialista tributário Ulisses Pizzolatti, em artigo publicado pela Tax Group, especializada em direito tributário.
Segundo Pizzolatti, ainda não há como definir a correta tributação do trust no Brasil.
“(…) a respeito do instituto da modalidade, podemos concluir que, enquanto não há um marco legal, nem decisões suficientes — tanto em âmbito administrativo quanto judicial — que analisem pormenorizadamente a relação jurídica estabelecida, não há segurança jurídica para estabelecermos a correta tributação dos trusts no Brasil”, diz.
Isso pode mudar se o PL 4.173/2023, que trata das regras sobre tributação de investimentos no exterior, for aprovado no Congresso. O texto inclui a regulamentação dos trusts e estabelece a obrigatoriedade de que se tornem entidades transparentes e declaradas por seus titulares.
Da mesma forma que versava a Medida Provisória (MP 1.171/2023), que caducou, os bens e direitos objeto de trust no exterior ficam sob titularidade do instituidor, passando ao beneficiário apenas no momento da distribuição ou do falecimento de quem o instituiu, o que ocorrer antes.
Tributação das “offshores”: o que o governo mudou no novo projeto sobre o assunto? – InfoMoney
Trust e offshore: qual a diferença?
Assim como o trust, as offshores também são alternativas no exterior para a gestão do patrimônio. No entanto, cada estrutura possui suas peculiaridades, e, dependendo do objetivo, uma ou outra pode oferecer mais vantagens.
O trust funciona a partir de um contrato que envolve, no mínimo, três partes: o detentor do patrimônio, o administrador e os beneficiários. O objetivo dessa estrutura é proteger os bens e reduzir a carga tributária quando houver a transferência do patrimônio (ou de seus rendimentos) aos beneficiários.
Já uma offshore é uma pessoa jurídica, e, por isso, a sua estrutura é mais complexa do que a de um trust. Além da gestão patrimonial, as offshores visam benefícios fiscais, e podem estar atreladas a operações comerciais entre empresas de diferentes países, bem como a investimentos no exterior.
Ou seja, uma offshore tem um espectro de atuação mais abrangente do que somente a gestão do patrimônio. Essa é uma das razões que a levam a ser uma estrutura mais cara do que um trust.
A escolha entre um ou outro formato dependerá basicamente dos objetivos e necessidades em relação ao patrimônio. Se a ideia for somente proteger os bens e facilitar a sua transferência aos herdeiros e beneficiários, um trust pode ser a solução mais simples e eficiente. Por outro lado, se, além disso, o objetivo for obter benefícios fiscais em função de transações comerciais e/ou aplicações financeiras, a offshore oferece mais ferramentas para isso.
E há casos nos quais as duas estruturas podem ser combinadas, de forma a serem complementares, facilitando a transferência dos bens e otimizando a gestão dos recursos lá fora. De qualquer forma, para decidir o melhor formato de gestão patrimonial, o ideal é contar com uma assessoria especializada, pois a escolha errada de uma estrutura financeira pode trazer sérios prejuízos.