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*Por Mariana Marcolin Peringer
Este artigo tem o propósito de expor as ideias de Sigmund Freud (1856-1939), considerado o pai da psicanálise, ou análise da mente, e que deixou importantes contribuições em suas obras. Em Totem e Tabu – Fundações da Sociedade, de 1912, Freud aborda a origem da consciência, a instituição do tabu para organizar a sociedade e a consequente restrição à liberdade humana.
Freud, médico neurologista e psiquiatra, nasceu em uma famÃlia judaica no Império AustrÃaco. Ficou conhecido pelo conceito de inconsciente humano e por sua teoria sobre o complexo de Ãdipo e, principalmente, por seu método de análise clÃnica cujo tratamento se dá através da escuta do paciente e a cura pela fala (talking cure).
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Antes de chegar em Freud, muitos pensadores já tinham refletido sobre a consciência. Hipócrates (460 – 377 A.C), considerado o pai da medicina, entendia que a vida devia mantida pelo equilÃbrio do coração, sistema respiratório, fÃgado e baço. Sócrates (469-399 a.C) defendia a supremacia da faculdade do pensamento. Platão (428-348 a.C) advogava a doutrina de que a mente era inteiramente não material, sendo a psyche considerada a alma.
Aristóteles (384-322 A.C), para muitos o pai da psicologia por ter estudado a fundo os fenômenos da consciência e memória, acreditava que a alma tinha que ser considerada imortal, tanto pelas necessidades morais, quanto pelas fÃsicas e psicológicas do homem. Já Santo Agostinho (354-430 a.C), um seguidor de Platão, via tudo pelo ângulo do amor. Para ele, a chave de superação dos conflitos mentais estaria no culto ao amor, sendo a medida do amor amar sem medida.
São Tomás de Aquino (1225 â1274), seguidor de Aristóteles, dizia que a harmonia devia ser buscada através da fé cristã e do racionalismo, ou seja, pelo fortalecimento da razão ou consciência. Observa-se que, na antiguidade grega mais remota, a mente parecia ter um caráter mitológico, o que mudou a partir de Hipócrates, que tratou a questão com mais cientificidade.
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Também precisamos citar os pensadores Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) como pioneiros do conceito de impulso no psiquismo e na vida. Em Schopenhauer, prevalece a âvontadeâ, segundo ele, insaciável, inquieta. A vontade é uma fome eterna que se alimenta de si própria. Algo insaciável, que nunca consegue ser satisfeito, sendo a causa de toda a dor; sem finalidade, e que nunca encontra a paz.
Nietzsche se apropria desse conceito, tornando-o múltiplo: uma vontade de potência, em uma potência que quer a si mesma, como algo que leva à luta, ao combate, numa definição do guerreiro e do artista. Segundo Nietzsche:
âSe, em fÃsica, potência é a capacidade de realizar trabalho; na filosofia, Vontade de Potência é a capacidade que a Vontade tem de efetivar-se. O homem não pode e não quer apenas conservar-se ou adaptar-se para sobreviver, só um homem doente desejaria isso, ele quer expandir-se, dominar, criar valores, dar sentidos próprios. Isto significa ser ativo no mundo, criar suas próprias condições de potência. à um efetivar-se no encontro com outras forças.â Nietzsche
Nesse contexto, Freud, na obra Totem e Tabu – Fundações da Sociedade examina as origens da civilização e da cultura. Através de estudos das teorias dos povos, descreve sua hipótese de como deve ter ocorrido a passagem para a consciência e para a civilização. Peter Gay, na obra Freud: Uma Vida para o nosso Tempo foi brilhante ao definir:
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“Freud empreendeu determinar o momento em que o animal homem deu o salto para a civilização,
prescrevendo para si os tabus indispensáveis a todas as sociedades organizadas.â
Freud começa pelo tabu – o tabu do incesto ou o horror ao incesto, adotado por sociedades que acreditam no totemismo. O totemismo foi examinado em tribos aborÃgenes australianas, vistas como uma raça particular, sem parentesco com vizinhos próximos. Não construÃam casas nem palhoças, não cultivavam o solo e não conheciam nem mesmo a arte da cerâmica. Desconheciam reis ou chefes, sendo a assembleia de homens maduros quem decidia sobre as questões comuns da tribo.
O totem, que seria um sÃmbolo que os representavam, era passado através da hereditariedade. Não observavam uma moral em suas vidas nem impunham a seus instintos um alto grau de limitação, porém estabeleciam com enorme cuidado o impedimento de relações incestuosas. Os membros do mesmo totem não podiam se casar, nem ter relações sexuais.
E, o que chama mais atenção é que toda a organização social parece servir a tal propósito, dado que são duas as principais caracterÃsticas observadas: (1) Totem – todo clã ou tribo tem um simbolismo e (2) Tabu – horror ao incesto, o primeiro tabu, uma primeira restrição à liberdade humana.
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Em Tabu e a ambivalência de sentimentos dos seres humanos, Freud demonstra que o próprio significado da palavra tabu já se divide em direções opostas e ambivalentes. Por um lado, tabu é algo santo, consagrado; por outro, é algo inquietante, perigoso, proibido e impuro. Para ele, não fazia sentido perguntar aos primitivos o verdadeiro motivo das proibições, ou seja, inquirir sobre a gênese do tabu, dado que ainda era inconsciente.
Com certeza, o tabu recaÃa sobre atividades para as quais havia um forte pendor e grande ambivalência de sentimentos. Ainda que prescinda qualquer fundamentação e tenha origem desconhecida, ele era evidente para aqueles sob o seu domÃnio.
Trata-se de uma situação realmente obscura, com os povos se submetendo a uma série de restrições. O tabu foi se tornando um poder fundamentado em si mesmo, enraizado no costume e na tradição, enfim, a lei. O tabu foi invadindo outras áreas – a mulher era tabu em perÃodos de gestação e pós-parto, a propriedade de um homem era tabu para qualquer outro, entre tantos outros.
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O tabu era a raiz de nossos mandamentos morais e nossas leis, ou o código mais antigo de leis não escritas da humanidade. Também podemos dizer que os tabus foram impostos a uma geração de homens primitivos, sendo mantidos de geração em geração talvez simplesmente pela autoridade dos pais e da sociedade e, assim, assimilados dentro das organizações psÃquicas como parte do patrimônio psÃquico herdado.
Movidas simplesmente pela tradição num contexto em que Friedrich Hayek, no seu livro The Fatal Conceit: the Errors of Socialism, que trata sobre a evolução cultural, no artigo âBetween Instinct and Reasonâ, mostra questões ambivalentes, como em âTwo Moralities in Cooperation and Conflictâ e âMind is not a guide but a product of cultural evolution, and is based more on imitation than on insight or reasonâ.
Em suma, ao abordar o totem, Freud combina uma das teorias de Charles Darwin sobre os arranjos das primeiras sociedades humanas – um macho-alfa cercado por um harém de fêmeas, semelhante ao arranjo de gorilas – e a teoria do ritual de sacrifÃcio tomada emprestada de William Robertson Smith, concluindo que a origem do totemismo repousa num evento singular.
Foi em seu último ensaio que Freud deu seu voo mais inventivo, migrando do tabu para o totem. Os totens, afinal, são tabus â questões ou simbolismos consagrados. Para detalhar, Freud traça a reconstrução de um acontecimento pré-histórico fundamental:
“O macho alfa queria para si todas as fêmeas e expulsa os irmãos machos do clã. Os irmãos pré-históricos expulsos do grupo retornam para matar seu pai, que eles temiam e respeitavam. Matam e comem! A refeição ritual, argumentou Freud, é um elemento vital de coesão social; âao sacrificar o totem, que é da mesma substância que os homens que o comem, o clã reafirma sua fé e identidade. à um ato coletivo, pleno de ambivalência – a morte do ser totêmico é ocasião para a dor, seguida pelo júbilo. Na verdade, a festa, continuação da matança, é algo exuberante e desinibido, um complemento curioso, mas necessário, do luto.”
Freud deduziu que o bando assassino de irmãos estava dominado por sentimentos contraditórios, a presente ambivalência de sentimentos dos seres humanos. Tendo odiado e, ao mesmo tempo, amado o pai temÃvel, os irmãos foram assaltados pelo remorso, que se apresentou numa nascente consciência de culpa. Na morte, o pai se tornou mais poderoso do que jamais fora durante sua vida, um lÃder, um totem.
O que ele havia impedido antes com sua própria existência, seus filhos agora proibiram para si mesmos na situação psicológica – a obediência protelada. Os filhos agora declaram proibida a morte do pai-substituto, ou seja, do Totem, o simbolismo que encontram para comunicar o que havia acontecido, o que estavam tomando consciência e instaurar os tabus necessários para organizar a tribo.
à importante observar a singular concepção de mundo e da natureza adotada pelos povos primitivos, chamada de Animismo, que, num sentido mais estrito, seria a doutrina das almas. Os primitivos acreditam em uma âanimaçãoâ dos seres vivos individuais. Assim, o comportamento do homem primitivo de reagir formando a ideia de almas, onde essa pode ser transferida para o mundo exterior, ou seja, para um Totem, parece bastante natural.
Oprimidos pela nascente consciência, a de culpa, os filhos instauraram os tabus fundamentais do Totemismo, organizando a sociedade num primeiro passo rumo à civilização. Totem e tabu, de fato, lançam as fundações da sociedade; antes, as relações estavam sujeitas à arbitrariedade do indivÃduo mais forte que agia conforme seus interesses e instintos. A vida humana em comum se tornou possÃvel apenas quando houve uma maioria mais forte que o indivÃduo isolado, mantendo-se superior a ele.
Então, o poder dessa sociedade se estabelece em oposição ao poder da força bruta individual. Essa substituição do poder do indivÃduo pelo da tribo, simbolizada no Totem, foi o passo cultural decisivo. Os preceitos do tabu constituÃram o primeiro âdireitoâ, a primeira lei, um esboço de norma social depois retratada em leis. O ser humano não é uma criatura branda, que, no máximo, defende-se quando atacado. Devemos incluir entre os dotes de sua natureza um forte quinhão de agressividade instintiva.
Freud inferiu, inclusive, que, em um estágio posterior, a consciência ainda sofre uma importante mudança quando é internalizada como autoridade – com isso os fenômenos da consciência atingir um novo patamar. A consciência mais rigorosa e vigilante é justamente o traço caracterÃstico do ser civilizado e moral.
A civilização controla o indivÃduo e faz com que seja vigiado por uma instância superior no interior de sua mente. Assim, podemos concluir que a consciência surgiu inicialmente da culpa e, posteriormente, da supressão da agressão, fortalecendo-se por novas supressões adicionais. Assim, a civilização e a cultura desenvolveram ainda mais seus ideais e exigências, evoluindo para as relações dos seres humanos entre si designadas por moral e ética.
A obra de Freud fez surgir uma nova compreensão do ser humano, um animal dotado de razão mas influenciado por instintos, onde o desejo é a energia motivacional primária da vida humana. E onde, talvez, no mais profundo dos desejos do homem pulse a liberdade humana. Não existe nada antes do desejo, exceto os estÃmulos através dos quais um desejo é transformado em uma ação.
Assim como o carvalho – enquanto embrião – está adormecido dentro de uma bolota, tudo começa na forma de um desejo – de desejos crescem as forças motivacionais que fazem o homem cultivar esperanças, fazer planos, ter coragem e estimular a mente a um grau altamente intensificado de ação na busca de algo.
Podemos concluir que o elemento cultural, através de totens e tabus, ou simbolismos de liderança e regras, apresenta-se como tentativa de regular as relações sociais, as relações dos homens entre si, que dizem respeito ao indivÃduo enquanto vizinho, colaborador, objeto sexual do outro, como membro de uma famÃlia ou do Estado. Em essência, os indivÃduos em sociedade precisam observar restrições, ao passo que o primitivo não conhecia tais limites.
A liberdade individual não é um bem cultural, ela era muito maior antes de qualquer civilização, porém não tinha valor algum. O animal homem era livre para exercer seus instintos, ainda mantidos no seu inconsciente; no entanto, com a evolução cultural passa a experimentar muitas restrições. Talvez o grande desafio da humanidade seja encontrar um equilÃbrio entre as exigências individuais e aquelas do grupo (ou culturais). A questão é se esse equilÃbrio é possÃvel mediante uma determinada configuração cultural ou se o conflito é insolúvel.