A volta do assistencialismo

Em meio a alta de preços global, o governo brasileiro parece atordoado, voltando a pensar em como tapar os buracos no curto prazo, nem que pra isso aumente a incerteza no longo prazo

Felippe Hermes

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(Dihandra Pinheiro/GettyImages)
(Dihandra Pinheiro/GettyImages)

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Em outros tempos, em um país com milhões de pessoas vivendo em insegurança alimentar, pobreza e precariedade, falas como esta eram comuns:

“Lamentavelmente no Brasil o voto não é ideológico, você tem uma parte da sociedade que pelo alto grau de empobrecimento é conduzida a pensar pelo estômago. É por isso que se distribui tanta cesta básica, tanto auxílio. Porque isso na verdade é uma peça de troca em época de eleição”

Trata-se de uma fala feita em 2000, que você pode conferir neste vídeo aqui. O autor, como você já deve ter imaginado, é o próprio Lula, criticando o assistencialismo promovido pelo governo FHC.

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Foi também Lula quem, já em abril de 2003, empossado presidente, mencionou que os auxílios estavam deixando as pessoas menos propensas a trabalhar.

Do ponto de vista político, é de certa maneira compreensível que Lula tenha dito isso, tendo em vista que reflete o pensamento de uma boa parcela da população.

A hipocrisia, claro, reside no fato de que, anos mais tarde, o próprio Lula fingiria que jamais disse ou pensou algo do tipo, imputando tal ideia aos seus críticos.

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Detalhes morais a parte, é interessante entender como as políticas públicas de assistencialismo mudaram no Brasil do século 21.

Quando, em abril de 2003, Lula foi a Cabedelo, na Paraíba, realizar o discurso sobre como os auxílios deixavam a população mais distante da roça, seu grande programa assistencial atendia pelo nome de “Fome Zero”.

Na prática, o Fome Zero era um emaranhado de programas sociais. Dentro dele, havia de palestras a programas que buscavam ressarcir o consumidor dos impostos mediante a apresentação de notas fiscais.

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Imagine a cena: uma família em situação de pobreza vai ao mercado, compra um saco de arroz, pede a nota fiscal, leva a nota fiscal até uma agência da Caixa Econômica e aguarda, então, o governo federal depositar a restituição do imposto pago naquele saco de feijão.

Como você pode perceber, o programa tateava soluções, contemplando uma visão centralizadora de que o governo deve definir as prioridades das famílias.

Distribuía-se cesta básica ou, ainda, vale gás (como nos tempos do governo FHC), em boa medida pela visão de que, se forem deixadas soltas, as famílias não saberão escolher o que precisam.

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A grande mudança no país não ocorreu por meio do Fome Zero. Veio de um programa que receberia críticas dos economistas históricos ligados a Lula e ao PT.

Estava contida em uma agenda que setores da base do partido acusavam de “neoliberal”. Em certo ponto, Maria da Conceição Tavares, economista e militante da sigla, chegaria a dizer não entender como o então ministro da Fazenda Antônio Palocci dava ouvidos à “moleques“, como o secretário Marcos Lisboa, a quem ela chamou de “debilóide”.

Foi dessa equipe que se introduziu um programa mais simples, o Bolsa Família.

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A paternidade do programa é ainda hoje um ponto levantado nas discussões, mas que, convenhamos, não tem qualquer relevância.

O Bolsa Família era o exato oposto do Fome Zero, apesar de a máquina de propaganda ter lutado para transformar ambos em uma única coisa.

No Bolsa Família, o governo fazia aquilo que sabia fazer: distribuir recursos. As famílias decidiam como gastar. Simples assim.

Já no Fome Zero, o governo fazia aquilo que os ideólogos de plantão desejam que ele faça: grandes debates e centralização.

No fim, Lula abraçou o Bolsa Família e o programa se tornou em uma unanimidade de aprovação, graças ao fato de que funciona. A maior parte da classe política brasileira tornou o PBF um ponto fora de discussão.

Ele consumia 0,5% do PIB brasileiro e atendia 12 milhões de famílias. Simples e efetivo.

Tínhamos um programa pronto e que atendia as necessidades, até que passamos a enfrentar uma pandemia.

A urgência de um evento global que paralisou a economia levou o Congresso a agir, criando um Auxílio Emergencial.

O programa foi estabelecido em tempo recorde, graças aos cadastros existentes até então. Seu resultado foi bastante efetivo.

Em meio a maior pandemia do século, a pobreza no país caiu. A renda das famílias aumentou graças às transferências do governo e, claro, a popularidade do presidente subiu.

Desde então, temos visto um cenário em que as políticas públicas de longo prazo têm sido substituídas por políticas emergenciais.

Criamos o “Auxílio Brasil”, renomeando o Bolsa Família e dando um upgrade no valor.

A alta, porém, não parece ter sido suficiente, em boa medida porque a inflação permanece acima de 12%, corroendo a renda das famílias.

A pandemia saiu de sua fase crítica, legando ao mundo desordem econômica e mais incerteza.

E é neste momento que nos encontramos.

Como se fosse pouco estar de espectador em uma crise global, agimos internamente de maneira confusa.

Há pouca ou nenhuma clareza sobre a política econômica para mitigar os efeitos por aqui. Ao que tudo indica, o governo parece viciado no Auxílio Emergencial e seus efeitos na popularidade do presidente.

O pior, porém, é que ignoramos as causas, ficando satisfeitos com a ideia de que “é uma crise global”.

Nossa moeda se desvalorizou de maneira avassaladora e, como era de se imaginar, isso empobreceu a população.

Quer um exemplo? Veja a questão dos combustíveis.

Em 2003, o barril de petróleo custava cerca de US$ 31 e a moeda americana era negociada a R$ 3,51.

Em 2010, o mesmo barril valia US$ 79, enquanto o dólar era negociado a R$ 1,65.

No período, o barril de petróleo subiu 154% em dólares e 27% em reais. A gasolina, por sua vez subiu, 16%.

Ficamos mais ricos No período graças ao boom de commodities agrícolas e à enxurrada de dólares que o país recebeu.

De 2010 para cá, porém, o petróleo subiu 46% em dólar e 330% em reais.

Ficamos mais pobres. Não há o que discutir quanto a isso. Exceto por maneiras de resolver.

A força da nossa moeda é um indicativo crucial sobre a força econômica da população.

Reduzir a desvalorização do real é a única maneira efetiva de melhorar o poder de compra.

Como fazer isso? Temos hoje a maior taxa de juros reais do mundo, ou seja, os juros menos a inflação esperada. Na teoria, isso ajudaria. O problema, claro, é que se a situação fiscal segue incerta, os juros não fazem milagre sozinhos.

E pouco importam os valores. Um auxílio aos caminhoneiros pode ser irrelevante do ponto de vista fiscal. Falamos aí de R$ 4 bilhões, ou 0,2% da arrecadação federal. O problema é a incerteza. O auxílio para por aí? As regras serão cumpridas?

Não há certeza pois não há qualquer lampejo de pensamento a longo prazo.

Estamos tapando buracos conforme eles aparecem. E o resultado é uma volta aos tempos de assistencialismo emergencial de cunho eleitoreiro.

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Felippe Hermes

Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com