Câmbio com stablecoins chega à sua fase exponencial

Câmbio de uma maneira instantânea, barata, transparente, 24/7, desintermediada e com contabilidade automática veio para ficar

Gustavo Cunha

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Uma das coisas que mais me fascinou quando tive o primeiro contato com o Bitcoin, nos idos de 2017, foi a capacidade de transferência de valores através da Internet sem intermediários, de pessoa para pessoa (peer-to-peer), praticamente instantâneo e de uma maneira totalmente global.

Tendo trabalhado diretamente com o mercado de câmbio por mais de 20 anos e conhecendo suas dores, isso me pareceu fascinante. Mas faltava uma coisa, tirar a volatilidade do ativo em questão (Bitcoin) e conseguir um lugar onde pudesse ser feita essa troca utilizando a tecnologia.

As stablecoins resolvem a primeira parte. Ter um token representativo de uma moeda fiduciária traz para o mundo de cripto a estabilidade necessária. Vários modelos foram testados nos últimos anos para se conseguir a paridade de 1:1 entre a moeda fiat e o token, e o que prevalece no momento é o de total colateralizacão do token por depósitos à vista ou títulos públicos de curtíssimo prazo do emissor da moeda em questão.

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As três maiores stablecoins são USDC, USDT e BUSD, e todas seguem esse formato. Por serem centralizadas e estarem na ponte entre as blockchains (totalmente transparentes) e o mercado financeiro tradicional, que é mais opaco nesse sentido, vira e mexe há dúvidas sobre se o valor dos colaterais são mesmo iguais aos valores dos tokens emitidos. Por estarem ainda em um ambiente não regulado, esses emissores acabam tendo brechas que não deveriam ter por seu modelo de negócio.

Essas stablecoins citadas pertencem a um ente central o que carrega por si uma fragilidade, ainda mais em um ambiente não regulado, mas dentre as três, a que me parece mais transparente e com um modelo de governança mais robusto é a USDC.

Uma alternativa a isso é o modelo da DAI, que é descentralizada e sobrecolateralizada. Tendo tudo onchain (dentro da blockchain), transparência aqui não é o problema, mas sim a colateralização: na DAI, a eficiência de capital é pior e parte considerável dos colaterais são em USDC, o que demonstra um risco sistêmico e indireto de centralização.

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Independentemente do modelo, a verdade é que hoje já temos um mercado de stablecoins de dólar muito ativo e representativo dentro do ambiente das blockchains públicas. Mas para termos a possibilidade de fazer câmbio via stablecoin temos que ter outras moedas representadas nela e aqui ainda temos um gargalo.

A segunda moeda fiduciária, o euro, tem pouquíssimas iniciativas e nenhuma que ainda pegou tração. A primeira em termos de tokens emitidos é a Stasis Euro (EURS) com um valor emitido na casa dos US$ 125 milhões contra mais de US$ 60 bilhões e US$ 40 bilhões emitidos de USDT e USDC, respectivamente.

Apesar do valor emitido ser um parâmetro, o melhor a se olhar aqui é a liquidez, já que, mesmo com valores emitidos pequenos, pode-se ter um mercado onde esse ativo gira inúmeras vezes o valor emitido todos os dias. Isso também não é o caso. O volume negociado de EURS ronda a casa dos US$ 2 milhões por dia, enquanto o USDC fica na casa dos US$ 4 bilhões.

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Outra stablecoin de Euro é a EUROC, que começou a ser emitida pela Circle, emissora do USDC, em meados de 2022, mas que, até o momento, tem um volume muito pequeno.

Se fôssemos comparar com o mercado mundial de câmbio spot, deveríamos ter volume de euro nesse mercado de aproximadamente um terço do volume de dólar. Ou seja, tem muito espaço para crescer.

A razão para isso pode vir do fato de as stablecoins ainda não serem reguladas e portanto não poderem participar da imensa maioria das operações de câmbio que envolvem trocas de serviços e produtos (destaque para o “ainda”).

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Essa é a realidade do euro, que é a segunda moeda mundial. Quando vamos para moedas menores, como o real, por exemplo, os valores emitidos e negociados ainda são ínfimos, individualmente ou comparativamente à representatividade do real no mercado spot de câmbio.

Um dos fatores que podem estar afetando isso é risco de crédito do emissor. Talvez risco de crédito não seja a melhor nomenclatura aqui, mas exemplifica o que quero dizer: o risco da stablecoin de determinada moeda não ter o lastro necessário para manter o 1:1. Como a maioria das iniciativas é centralizada, e com um pé no mercado tradicional, leia-se off-chain, atestar suas reservas é complicado.

Quando se junta a isso o fato de nenhuma ser propriamente regulada, forma-se um ambiente mais complexo. É verdade que isso afeta mais quem for mantê-las em suas carteiras do quem for usá-las somente para câmbio, já que o risco aqui fica restrito ao momento da transação entre as moedas, mas mesmo assim.

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Das iniciativas que acompanho a que está mais próxima dos reguladores e requisitos legais que parecem que vão aflorar nesse mercado é a Centre, junção da Circle e Coinbase e emissora do USDC e EURC. Em um report recente onde eles falam sobre os últimos 4 anos do USDC, achei alguns dados interessantes, como o fato de mais de 70% dos USDCs não estarem em exchanges e que mais de 15% das transações de USDC serem entre carteiras individuais, de onde inferem que o USDC pode estar sendo usado para transações que envolvam produtos ou serviços no mercado off-line.

Bem, fechando essa primeira parte, o que podemos ver é que tirando as stablecoins de dólar, as demais ainda têm uma participação insipiente no mundo cripto.

A outra ponta do quebra-cabeça é o lugar de negociação. Aqui já temos um ambiente completamente desenvolvido. Seja via exchanges centralizadas (CEX) ou as descentralizadas (DEX), temos ambientes de negociação de tokens (ou stablecoins) já consolidados e com bilhões trafegando por eles.

Verdade seja dita que no caso das CEX há o risco de acontecer o que ocorreu com a FTX, mas o risco volta ao ponto que desenvolvi acima sobre as stablecoins, ou seja, o risco de deixar ativos custodiados lá. Se a ideia for usá-las somente para negociar, esse risco é minimizado. Pensando nisso, algumas CEX já estão trabalhando para terem sistemas de negociação não-custodiais, onde você consegue negociar os ativos sem exatamente ter que transferi-los para a custodia da exchange.

Colocando tudo junto, um paper acadêmico recente que analisa as trocas entre USDC e EURC em uma DEX (Uniswap) durante o último trimestre do ano passado me chamou a atenção. Apesar do volume de negociação ainda insipiente, a correlação entre as taxas de câmbio do mercado das stablecoins e dos seus respectivos fiat foi enorme. Ou seja, a mesma taxa de câmbio.

E aí entram todas as vantagens de blockchain: 24/7, desintermediado, com liquidação, registro e audit trail automático, quase instantâneo, preço totalmente transparente e o melhor de tudo, praticamente sem custo.

Nesse paper eles simulam uma transação de troca de US$ 500 do mercado fiat de dólar para o mercado fiat de euro via as duas stablecoins e a DEX e chegam à possibilidade do custo disso ser tão baixo quanto 0,01%, ao passo que via cambio tradicional é difícil encontrar custo inferior a 2,00%, e na média o custo ficar por volta dos 6,00%.

O que vejo ao encontrar textos como esse, é que isso não é mais um mercado de testes e sim um mercado que começa a entrar em sua fase exponencial. A regulamentação dessas stablecoins, que devem ter como base a legislação americana sobre o assunto, com uma chance considerável de sair ainda esse semestre é, a meu ver, o principal fator.

Uma coisa que pode retardar esse processo são as discussões sobre CBDCs, já que, querendo ou não, as stablecoins e CBDCs são concorrentes nesse meio de pagamento, com a CBDC tendo uma vantagem enorme por seu emissor (o Banco Central) não necessitar a comprovação de reservas.

Apesar disso ser uma possibilidade, eu não apostaria muito nela, já que os modelos que parecem mais promissores atualmente são os que seguem o padrão CBDC de atacado e stablecoins de varejo, tal qual o modelo proposto para o Real Digital.

Nesse modelo, o que todos terão é uma stablecoin de uma entidade regulada pelo Banco Central. Em qual rede e com qual liberdade essa stablecoin poderá ser transacionada são questões importantes, e ainda em aberto, pois tocam em pontos como privacidade, câmbio e toda regulação de KYC e prevenção a lavagem de dinheiro.

Por fim, replico aqui uma frase que coloquei em um artigo que escrevi em 2019 sobre os casos de uso de stablecoins:

“Se tivermos duas stablecoins em uma determinada exchange ou carteira, o fechamento de câmbio pode ser feito entre elas de forma fácil, barata e sem intermediários….”

A possibilidade do ponto de vista técnico já é possível, mas precisa-se observar a regulamentação para não infringir nenhuma norma”.

De lá para cá muita água passou por baixo dessa ponte e a regulação está chegando e com ela a exponencialidade desse modelo de negócio.

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Links que me ajudaram nesse texto:

Composição do lastro da Stablecoin DAI | Statista

Lista das stablecoins | CoinMarketCap

Estatísticas do mercado de cambio – Relatório trianual do BIS Table D11.3

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Gustavo Cunha

Autor do livro A tokenização do Dinheiro, fundador da Fintrender.com, profissional com mais de 20 anos de atuação no mercado financeiro tradicional, tendo sido diretor do Rabobank no Brasil e mais de oito anos de atuação em inovação (majoritariamente cripto e blockchain)