Como retomar a agenda da segurança pública, que foi negligenciada pelo Estado brasileiro

Seja por causa da alta taxa de criminalidade nos centros urbanos, seja pela própria sensação de insegurança que paira como um fantasma que assombra a população, essa pauta se impõe de modo inescapável para administradores públicos, legisladores, forças policiais e sociedade civil.

Fabio Cardoso

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A agenda da segurança pública é um dos temas mais urgentes da agenda brasileira. Seja por causa da alta taxa de criminalidade nos centros urbanos, seja pela própria sensação de insegurança que paira como um fantasma que assombra a população, essa pauta se impõe de modo inescapável para administradores públicos, legisladores, forças policiais e sociedade civil. Tem-se a impressão, no entanto, que a conversa séria a respeito desse tema foi abandonada no debate público.

Será que esta é uma sensação que se confirma?

No segundo episódio do videocast Rio Bravo, disponível desde quarta-feira, dia 27, no canal da Rio Bravo no YouTube, Irapuã Santana, doutor em direito e colunista do jornal “O Globo”, e Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, analisam o estado de coisas envolvendo essa temática, bem como destacam as possíveis alternativas para o impasse da violência no país à luz das boas práticas nos estados e da defesa de políticas públicas que se amparam na tomada de decisão mais racional, sem apelar para as saídas mais fáceis.

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A propósito da pergunta que serve como ponto de partida para a discussão, Irapuã Santana observa que a violência se naturalizou no cotidiano do país. “Nós temos mais de 40 mil mortes por ano; milhares de casos de furto e de roubo, atingindo o dia a dia do trabalhador brasileiro”, afirma. “Nós temos falado, sim, mas de forma sensacionalista”, opina, ressaltando a importância de discutir o tema com seriedade.

Por sua vez, Renato Sérgio de Lima diz que o Brasil é um país com graus de violência extrema e de insegurança bastante elevados. “Para que se tenha uma ideia, o Brasil é responsável sozinho por 20% dos homicídios cometidos no planeta – e nós temos 2,7% da população. Ou seja, nós naturalizamos a morte como algo que pode acontecer”.  A situação se torna ainda mais grave, continua Lima, na medida em que o país convive com outras práticas, como violência sexual, violência contra criança e adolescente, bem como com crimes patrimoniais. “E as respostas públicas são extremamente defasadas e reprodutoras dessa violência”, explica.

Renato Sérgio de Lima cita os dados com alguma facilidade, o que se justifica pelo fato de o Fórum de Segurança Pública ser o responsável pela edição no Anuário de Segurança Pública, que não apenas reúne as informações relacionadas à violência no país, mas também apresenta indicadores que apontam avanços ou retrocessos no que se refere à agenda da Segurança Pública. Na mais recente edição, por exemplo, o Anuário reconhece que houve recuo da violência, mas salienta que é preciso cautela na identificação dos fatores e causas para este fenômeno.

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Pânico moral e ideologia da militarização

No videocast, o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública fala a respeito do pânico moral, que, em linhas gerais, significa o seguinte: “quando as pessoas estão reféns da insegurança, pouco importa para elas questões mais macro. Ela quer alguém que vai parar de roubar o celular e aí aceita que um vingador/justiceiro faça o serviço que já é do Estado”.

Para Irapuã Santana, existe uma tendência a analisar determinadas pautas (a saber: Direitos Humanos e Segurança Pública) como agendas exclusivas da esquerda e da direita, respectivamente, mas o entendimento precisaria ser diferente. Nas palavras do colunista do jornal “O Globo”: “Estas deveriam ser pautas suprapartidárias. Nós poderíamos divergir da maneira como iremos enfrentar esses temas, mas estas deveriam ser preocupações de todos”. Na avaliação de Santana, é fundamental que tanto a esquerda busque dar uma resposta mais concreta para a população no que tange à violência, assim como a direita deve estar atenta à questão social.

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Como exemplo, Irapuã Santana cita a operação deflagrada pela Polícia Militar do Rio de Janeiro em conjunto com a Polícia Rodoviária Federal, que resultou na morte de 26 pessoas na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro em maio deste ano. “Não existe pena de morte na Constituição”, lembra ele, destacando que não há plano central de combate à violência. Nesse sentido, quando os números apontam queda nos índices, isso se deve muito mais à iniciativa dos estados em particular do que a uma articulação entre governo federal e as unidades da federação.

Renato Sérgio de Lima argumenta que, uma das consequências de não se levar em consideração as políticas públicas da área de segurança, é a adoção de uma estratégia de enfrentamento do inimigo como a grande resposta ao problema da violência. “É essa mensagem que chega à cidadã que pega o ônibus de madrugada para começar a trabalhar às 8h da manhã”.

Nesse sentido, e concordando com a análise de Irapuã Santana, muito embora existam programas que tentem articular as iniciativas locais que tentam mudar essa realidade, tão logo as secretarias de Segurança passam por mudanças, tudo volta ao modus operandi anterior. “Nos últimos anos, nós tivemos em torno de 15 programas que tentaram mudar isso, mas, quando saem governadores ou secretários, a força da ideia de que ‘tem que ir pra cima’ é maior. E, se não for, perde voto. É a ideologia da militarização”, explica.

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Uma das medidas que vai de encontro à ideologia da militarização é o uso das câmeras grava-tudo pela Polícia Militar. Em São Paulo, já no primeiro mês, houve a redução da letalidade policial. Atualmente, as câmeras corporais foram adotadas em Santa Catarina (o pioneiro no Brasil) e em Rondônia, ambos em 2019. Levantamento recente do Datafolha mostra que 90% da população em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais apoiam essa iniciativa. Aqui, Santana chama a atenção para o fato de que, enquanto parte significativa da Polícia é a favor, candidatos da direita e até de centro-esquerda são contra à medida.

Já Renato Sérgio de Lima destaca que a adoção das câmeras tem outro efeito, menos perceptível à primeira vista, mas que se alinha à agenda de coibir a violência e o crime. “Na verdade, o uso da câmera combate à microcorrupção, como os pedidos de favores indevidos seja do comerciante, seja do vereador, reduzindo, assim, a discricionariedade (liberdade de ação administrativa) do policial da ponta”.

O diretor-presidente do Fórum de Segurança Pública assinala que, enquanto essa iniciativa é ótima para a instituição policial, que ganha respeito e credibilidade, é ruim para o tipo de político que faz uso desses favores. E é por esse motivo que ele questiona se os demais estados terão maturidade para fazer isso, tendo em vista que essa iniciativa mexe na essência da relação do poder público com a sociedade.

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Em uma sociedade complexa e com tantos problemas a serem resolvidos no âmbito da segurança pública, qual é o tópico que não pode ficar de fora dessa discussão? Ciente da dificuldade de apontar apenas um, Irapuã Santana aponta para a violência racial.

“Quando falamos em violência, em violência policial, em combate ao crime, nós também estamos falando de racismo. Mais de 80% dos homicídios perpetrados pela polícia estão relacionados à população negra, assim como mais de 75% dos homicídios em geral tocam esse grupo da sociedade”, contextualiza Santana.

Na mesma linha do argumento desenvolvido por Irapuã Santana, Renato Sérgio de Lima sublinha que o grande desafio do próximo governo é a reforma do modelo da segurança pública. Ele entende que o desafio não é simples. “Se você perguntar hoje o que é uma polícia antirracista, o próprio movimento negro não saberá responder. Não existe densidade de debate para dizer o que é uma instituição antirracista. É um ponto de reflexão que precisa de novos estudos e debates”. Para Lima, a câmera corporal e modelos de supervisão ajudam a reduzir a diferenciação racial, mas a questão estrutural permanece.

“Quando se fala em racismo estrutural, as instituições dizem que não é problema delas, afinal, é ‘estrutural da sociedade brasileira, então, você vai reproduzindo’. É necessário de uma reforma, sim, para, de modo proativo, mudar esse quadro”, analisa.

Como questão urgente da sociedade brasileira, Renato Sérgio de Lima defende seja deixada de lado a negligência histórica que o Estado brasileiro tem em relação à segurança “e não achar que a polícia é apenas para negros, pobres e moradores de periferia, mas uma questão essencial para o desenvolvimento do país”.

A íntegra do Videocast Rio Bravo está disponível no YouTube a partir do link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=rs8t-7pIN8k&t=2453s

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Fabio Cardoso

é jornalista, produtor do Podcast Rio Bravo e curador do Videocast Rio Bravo. Mestre em comunicação contemporânea pela Anhembi Morumbi e doutor em Comunicação e América Latina pela USP.