Boeing x Embraer: após rompimento bilionário, americana avança sobre talentos da brasileira

Contratação de engenheiros que guardam 'segredos industriais' é questionada na Justiça por suposta ameaça à soberania nacional

Lucas Sampaio

Logo da Boeing na fachada do prédio da sede mundial corporativa da empresa, em Chicago, Illinois, em 28 de novembro de 2006 (Foto: Scott Olson/Getty Images)
Logo da Boeing na fachada do prédio da sede mundial corporativa da empresa, em Chicago, Illinois, em 28 de novembro de 2006 (Foto: Scott Olson/Getty Images)

Anos após a Boeing (BOEI34) desistir de comprar a divisão comercial da Embraer (EMBR3), em um negócio avaliado em US$ 5,2 bilhões, a gigante americana está avançando sobre a multinacional brasileira de uma outra forma: contratando dezenas de engenheiros e funcionários extremamente qualificados, principalmente em São José dos Campos (SP), o berço da Embraer e do setor aeroespacial e de defesa do Brasil.

O foco são engenheiros de nível sênior, principalmente da área de estratégia e aviônica, que têm anos de experiência, chefiam importantes áreas de desenvolvimento de aeronaves e possuem informações privilegiadas de projetos com segredos industriais, como os caças Gripen – que o governo brasileiro comprou da sueca Saab, em 2013 (ela inclusive venceu a disputa contra a francesa Dassault e a americana McDonnell Douglas, uma subsidiária da Boeing, devido à transferência da tecnologia).

As contratações começaram em meados do ano passado, continuam até hoje e envolvem funcionários não só da Embraer, mas também de empresas do polo aeroespacial brasileiro, que se desenvolveu nas últimas décadas no Vale do Paraíba devido à empresa e ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).

Das mais de 200 contratações que já foram feitas pela Boeing nos últimos meses, mais de 90 foram de funcionários da Embraer (para efeito de comparação, a multinacional brasileira tem um corpo de engenharia de aproximadamente 3,5 mil profissionais e o ITA formou 1,6 mil engenheiros com especialização aeroespacial nos últimos 21 anos, em um programa feito em parceria com a Embraer).

Levantamento feito pela Embraer em novembro, quando a Boeing já tinha contratado cerca de 65 engenheiros altamente especializados (número que subiu para cerca de 90 neste ano), aponta que os profissionais perdidos “exerciam, em sua maioria, posições de liderança, e tinham, em média, mais de 13 anos de trabalho na companhia”.

O estudo destaca ainda “a preferência pela área de aviônica que, não por acaso, é a área de maior escassez de profissionais especializados no âmbito da engenharia aeronáutica”. Esses profissionais são “responsáveis pelo desenvolvimento dos sistemas de integração homem-máquina” (fazem os sistemas de navegação, os comandos, a comunicação, os controles de voo e o piloto automático, por exemplo).

O InfoMoney conversou nos últimos meses com engenheiros que foram contratados pela Boeing, que continuam na empresa brasileira e/ou que participaram da segregação da divisão comercial da Embraer, para a construção da joint venture (a gigante americana ficaria com 80% do novo negócio e a multinacional brasileira, com 20%). Quase todos os profissionais conversaram sob a condição de anonimato, com a exceção de um – que hoje trabalha na Vale (veja mais abaixo).

É consenso entre os entrevistados que a Boeing, quando anunciou a compra da aviação comercial da Embraer, estava interessada não só nos aviões de até 150 passageiros da empresa — segmento em que a multinacional brasileira é líder e se destaca —, mas também em seu corpo técnico. Entre as contratações feitas pela Boeing neste ano, por exemplo, estão a de vagas especializadas como engenheiro sênior de projeto e análise de sistemas eletrônicos, engenheiro sênior de modificações de interiores de cabine e engenheiro sênior de projeto e análise de sistemas mecânicos.

Para tentar “estancar a sangria” e reter seus talentos, a Embraer tem dado aumentos de salários e pagado benefícios aos funcionários, como cursos de formação e qualificação (que profissionais pagavam do próprio bolso). Há relatos de reajustes inclusive para engenheiros que não receberam propostas da Boeing, mas trabalham em áreas estratégicas da empresa.

Boeing ‘contra a rapa’

Além da Embraer, companhias altamente especializadas do setor aeroespacial brasileiro também têm perdido seus profissionais, com décadas de casa. Elas alegam não poder competir com o “poder de fogo” da Boeing, que tem mais de 150 mil funcionários em todo o mundo e pretende contratar mais 10 mil em 2023, após já ter contratado 23 mil pessoas no ano passado, segundo a Dow Jones Newswires.

A Embraer, por exemplo, tem “apenas” 18 mil funcionários — menos do que a Boeing contratou só em 2022. O número de trabalhadores na divisão de aviões comerciais da gigante americana cresceu 15%, para mais de 41 mil pessoas, com quase 5 mil contratações nas suas principais instalações, que ficam no estado de Washington, nos Estados Unidos.

No Brasil, há casos de empresas brasileiras que perderam o seu engenheiro-chefe, que detinha o conhecimento tecnológico dos projetos, ou que viram 70% dos engenheiros de uma área específica pedir demissão. Entre as empresas afetadas estão as companhias Orbital Engenharia, Akaer, Avibras, AEL Sistemas, Safran e MacJee, entre outras.

Diante deste cenário, duas associações entraram com uma Ação Civil Pública (ACP) contra a Boeing, por ameaça à soberania nacional, para tentar interromper imediatamente as contratações (e depois impor um limite às movimentações, além de buscar reparação às companhias mais afetadas). O processo foi movido em novembro pela Abimde (Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança) e pela AIAB (Associação Das Indústrias Aeroespaciais Do Brasil), que são representadas pelo escritório Tojal Renault Advogados. Ainda não há uma decisão sobre o caso.

O escritório aponta na ação que a Boeing “obteve uma série de informações sigilosas e estratégicas da Embraer e, consequentemente, de todas as empresas estratégicas de Defesa e empresas de Defesa do setor aeroespacial, já que praticamente todas são prestadoras de serviços e/ou fornecedoras da própria Embraer, a maior empresa de defesa da América Latina”.

O documento destaca também que a Embraer “é a principal empresa do setor de defesa aeroespacial brasileiro e a que tem melhores condições operacionais e econômicas de resistir e enfrentar os atos de aliciamento que estão sendo sistematicamente praticados pela Boeing”.

O presidente da Abimde diz que a Boeing está contratando “a nata da engenharia” brasileira — “a elite da engenharia aeroespacial” — e que há um importante aspecto econômico envolvendo as contratações. “Para cada engenheiro projetando uma aeronave, você emprega outras 47 pessoas. Se eu perco essa capacidade de engenharia, se eu perco 100 engenheiros, eu perco 4,7 mil outros empregos”.

“O faturamento da Boeing é de R$ 500 bilhões. Isso é quase um terço de todo o PIB industrial brasileiro, que é de R$ 1,6 trilhão”, afirma Roberto Gallo, presidente da Abimde. Ele chama a conduta da empresa americana de “agressiva” e “absolutamente atípica e deletéria para o setor”. “Do ponto de vista de poder econômico, ela [a Boeing] pode fazer qualquer coisa. Um elefante desses entrando no mercado [brasileiro] pode fazer um estrago”.

Boeing x Embraer

O InfoMoney procurou a Boeing e a Embraer e pediu entrevistas com porta-vozes de ambas as empresas, para falar sobre a disputa por profissionais brasileiros, mas as empresas preferiram se manifestar por meio de comunicados.

A Embraer afirma que “apoia a livre concorrência”, mas fala em “cooptação de profissionais altamente qualificados”. “A ação movida pelas associações aeroespaciais e de defesa brasileiras é para fazer com que a Boeing interrompa o processo de atração e contratação sistemática de engenheiros de empresas que fazem parte da Base Industrial de Defesa (BID) do país”, diz a empresa. “A Embraer, como uma das associadas das entidades, está ciente e apoia essa ação civil pública, reiterando seu compromisso com o livre mercado, a mobilidade profissional e ações baseadas em valores éticos e morais”.

A Boeing não diz quantos funcionários já contratou nem quantos pretende contratar no país. Mas a empresa elegeu nos últimos anos o Brasil, junto com a Polônia e a Ucrânia, como nações estratégicas para ampliar sua presença, devido à qualidade da mão de obra especializada. Esse processo foi intensificado após a invasão da Ucrânia pela Rússia, que levou a Boeing a fechar sua área de desenvolvimento na Rússia e transferir seus profissionais principalmente para a Polônia (e em menor grau para os Estados Unidos). Apesar da guerra, o escritório ucraniano continua operando.

Questionada especificamente sobre as contratações no Brasil e a Ação Civil Pública, a empresa disse apenas que “o país possui um rico histórico na aviação, universidades técnicas de ponta e um forte ecossistema de engenharia” e que espera “continuar contribuindo com a indústria aeroespacial brasileira”. “Como uma empresa global, a Boeing atrai e desenvolve os melhores talentos nos Estados Unidos e ao redor do mundo para atender a demanda global por nossos produtos e serviços aeroespaciais”.

Negócio frustrado

A proposta da Boeing para comprar 80% da divisão comercial da Embraer foi divulgada pela primeira vez no fim de 2017. Em abril de 2020, depois de mais de dois anos de negociação e adaptações (a empresa brasileira chegou a segregar toda a sua divisão comercial, para concluir a venda), a gigante americana anunciou a desistência do negócio.

Na ocasião, o mundo vivia a incerteza do início da pandemia de Covid-19 e a Boeing enfrentava uma série de graves problemas com o 737-Max (dois aviões do modelo caíram em um intervalo de cinco meses, matando 346 pessoas). Isso fez com que governos proibissem o 737-Max de voar e companhias aéreas de todo mundo fossem obrigadas a permanecer com as suas aeronaves em solo.

Ao anunciar a desistência do negócio, a Boeing afirmou na época que a Embraer não tinha “atendido as condições necessárias” nem cumprido o contrato. A empresa brasileira negou e disse que a Boeing rescindiu “indevidamente” o acordo, “fabricando falsas alegações”. Disse ainda que a gigante americana vinha adotando “um padrão sistemático de atraso e violações repetidas ao MTA (acordo), pela falta de vontade em concluir a transação, pela sua condição financeira, por conta dos problemas com o 737-Max e por outros problemas comerciais e de reputação”.

As duas empresas estão em um processo de arbitragem, que já se arrasta por quase três anos, para definir quem está com a razão (e se uma companhia deve indenizar a outra pelo fim do acordo).

Arbitragem

Sobre o negócio frustrado e a arbitragem, a Boeing afirmou ao InfoMoney que rescindiu o acordo “depois que a Embraer não cumpriu uma série de condições importantes do contrato”. “A Embraer contestou nosso direito de rescisão e estamos arbitrando essa disputa em um processo confidencial. Não diremos mais nada sobre isso enquanto prosseguimos com a arbitragem”.

Já a Embraer disse que “não comenta sobre o processo de arbitragem”. Em agosto de 2022, a empresa brasileira afirmou à reportagem que “tem convicção de que a Boeing rescindiu indevidamente o Acordo Global da Operação (MTA) e produziu alegações falsas como pretexto para tentar evitar seus compromissos de fechar a transação e pagar à Embraer o preço de compra de US$ 4,2 bilhões”. “A Embraer cumpriu as suas obrigações sob o MTA e satisfez todas as condições necessárias para a conclusão do acordo”.

Na ocasião, a empresa foi procurada porque o presidente da Boeing para a América Latina e Caribe, Landon Loomis, afirmou ao InfoMoney que a arbitragem era um processo “muito lento”, “muito demorado”, mas que a empresa americana não havia rescindido o acordo por causa da pandemia e/ou dos problemas com o 737-Max.

“Não teve a ver com a pandemia [a desistência do negócio], só com o contrato. Se a Embraer teve algum problema para cumprir o contrato, por causa da pandemia, eu não sei. Mas, da parte da Boeing, tínhamos o direito de romper o contrato se cláusulas não fossem cumpridas”, afirmou Loomis. Na ocasião, quando as contratações já haviam começado, o executivo fez questão de elogiar os funcionários da Embraer e disse que a empresa tem um corpo de engenheiros extremamente qualificado.

Fim da novela em 2023?

Apesar de evitarem o tema publicamente, ambas as empresas têm capital aberto em bolsa e são obrigadas a citar em seus balanços trimestrais a arbitragem em andamento, devido ao acordo frustrado.

Nas demonstrações financeiras do quarto trimestre de 2022, divulgadas na sexta-feira (10), a Embraer afirma estar “buscando todas as medidas cabíveis contra a Boeing pelos danos sofridos”, “incluindo procedimentos arbitrais iniciados por ambos os lados”. “Não há garantias com relação ao tempo ou resultado dos procedimentos arbitrais ou qualquer reparação que a Embraer possa receber ou perda que a Embraer possa sofrer como resultado ou com relação a tais procedimentos arbitrais”.

Na conferência para comentar o resultado trimestral, também na sexta, a Embraer disse aos acionistas que espera concluir o processo de arbitragem com a Boeing até 2024.

Já a Boeing afirmou em seu balanço, divulgado recentemente: “Em 2020, exercemos nosso direito contratual de rescindir o acordo com base na falha da Embraer em atender a certas condições de conclusão exigidas. A Embraer contestou nosso direito de rescindir os contratos, e a disputa está atualmente em arbitragem”. A empresa diz não poder “estimar razoavelmente uma faixa de perda, se houver”, e que espera que o processo seja concluído “no final de 2023 ou início de 2024”.

Assédio ‘habitual’

Wilson Mesquita Júnior é engenheiro, trabalhou 20 anos e 9 meses na Embraer e está há um ano na Vale, como coordenador de engenharia de manutenção. Ele passou por quase todas as áreas da empresa de aviação (divisão executiva, comercial, de defesa e segurança e de serviços) e atuou também na joint venture (empresa criada para separar a divisão comercial, devido ao acordo com a Boeing).

Júnior conta que a Embraer já passou por movimentos semelhantes no passado, quando a europeia Airbus e a canadense Bombardier buscaram e contrataram engenheiros da área de desenvolvimento da multinacional brasileira. “A Bombardier chegou a montar um escritório em São José dos Campos. Tenho vários amigos que foram trabalhar lá no Canadá”.

Ele foi o único engenheiro que aceitou falar com a reportagem e se identificar. Sobre o assédio das empresas estrangeiras aos engenheiros da Embraer, Júnior afirma que a empresa “sempre foi reconhecida por essa capacidade de desenvolvimento de aeronaves”. “Nós tínhamos consciência [na joint venture] que a Boeing estava comprando [parte da Embraer] não só pela divisão comercial, mas também pelos engenheiros. Porque a Embraer tem um corpo técnico muito qualificado”.

Lucas Sampaio

Jornalista com 12 anos de experiência nos principais grupos de comunicação do Brasil (TV Globo, Folha, Estadão e Grupo Abril), em diversas funções (editor, repórter, produtor e redator) e editorias (economia, internacional, tecnologia, política e cidades). Graduado pela UFSC com intercâmbio na Universidade Nova de Lisboa.