Cripto Tether (USDT) é usada na 25 de Março para alimentar contrabando em SP; conheça o esquema

Uso ilícito ajuda a explicar por que cripto indexada ao dólar movimenta 9 vezes mais que o Bitcoin, a moeda digital mais famosa

Paulo Alves

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Alvos constantes de operações de combate ao contrabando, alguns lojistas da região da rua 25 de Março, em São Paulo, adotaram um novo meio de driblar as autoridades na compra de produtos para reabastecer os estoques: criptoativos que funcionam como “dólares digitais”, capazes de ser enviados em segundos para fornecedores no exterior.

A remessa ilegal de dólares conhecida como dólar-cabo virou o cripto-cabo. Ela começou com o Bitcoin (BTC), mas, recentemente, passou a ser adotada em larga escala usando a Tether (USDT), criptomoeda indexada à moeda americana e que, por isso, não sofre volatilidade. O ativo é comprado sem a devida declaração ao Banco Central, que não enxerga uma operação de câmbio camuflada — ou seja, evasão de divisas.

Fontes ouvidas pelo InfoMoney afirmam que esta é uma prática conhecida de importadores que declaram compras com valores a menor e pagam a diferença usando criptos. Eles se valem do caráter anônimo e da falta de controles das criptomoedas para enviar dinheiro para fora do País sem declarar operações de câmbio – e sobretudo sem informar que são destinadas à importação de bens.

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As transações de USDT no mercado ilegal ajudam a explicar a dominância desta criptomoeda nas apurações da Receita Federal a partir de reportes de corretoras de ativos digitais. Somente no ano passado, R$ 109,3 bilhões passaram pelo crivo do órgão, quase 69% do total das declarações envolvendo todos os criptoativos no País — incluindo o mais famoso, o Bitcoin (BTC).

Em 2023, a USDT ficou ainda mais hegemônica. Dados referentes ao primeiro trimestre (os mais recentes divulgados até aqui) apontam que, dos R$ 45,2 bilhões em movimentações declaradas de criptos, R$ 37,1 bilhões foram de USDT. O dólar digital já responde por 82% do mercado cripto brasileiro, e movimenta 9 vezes mais que o BTC.

Em entrevista concedida ao InfoMoney (confira a íntegra), o diretor de tecnologia da Tether, o italiano Paolo Ardoino, afirmou que, se brasileiros utilizam a criptomoeda para realizar remessas internacionais sem declarar e recolher impostos, a culpa não pode ser atribuída ao ativo digital.

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“A evasão fiscal não é um problema que começou com Bitcoin, não é um problema que começou com stablecoins. É um problema que também é nosso, as pessoas estão sonegando impostos”, falou. “Não é a tecnologia que comete evasão fiscal. Quando as pessoas decidem praticar atividades ilícitas, não é culpa da tecnologia, é culpa das pessoas”.

Segundo o executivo, o crescimento da criptomoeda USDT no Brasil se dá por sua facilidade de uso, já que funciona como uma versão digitalizada do dólar que pode ser armazenada no smartphone.

Segundo apurado pela reportagem, no entanto, o número bilionário em movimentações não está ligado ao usuário comum de varejo, mas a um esquema de empresas de fachada que intermediam a remessa de dólares para o exterior – em determinados casos, como pagamento pelo contrabando que abastece algumas lojas da 25 de Março.

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Contatada, a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) disse não ter conhecimento sobre o caso. Representantes da União dos Lojistas da Rua 25 de Março (UNIVINCO) não foram localizados.

O Ministério Público Federal em São Paulo diz desconhecer crimes com esse teor. Já o Banco Central, perguntado sobre a evasão de divisas com uso de criptoativos, disse que não irá comentar.

A Receita Federal, no entanto, confirmou que está ciente da situação e reconhece que doleiros têm, cada vez mais, empregado criptomoedas em suas transações. O órgão diz estar atento e empregando esforços para fiscalizar e repreender o crime em questão (veja a resposta completa da Receita).

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Como funciona o esquema

A incerteza sobre o regime legal das stablecoins abre brechas para quem quer realizar evasão de divisas: basta não declarar, alegando que se trata de conversão com o objetivo de negociar criptomoedas, e contar com a dificuldade no rastreio de transações em blockchain para ocultar os rastros da remessa ilegal de dólares.

Para comprar criptomoedas longe dos olhares das autoridades, os doleiros que atuam no mercado ilegal de USDT e subsidiam o contrabando em São Paulo não costumam usar corretoras de varejo. Tampouco procuram a empresa que emite a criptomoeda, que pratica preço mais alto do que o mercado paralelo e demora 24 horas para liberar um pedido.

Em vez disso, eles lançam mão de OTCs (do inglês, Over The Counter), ou Mercados de Balcão, empresas voltadas para o atacado e que movimentam volumes muito maiores do que as exchanges de criptomoedas tradicionais.

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Segundo múltiplas fontes ouvidas pelo InfoMoney, doleiros se valem da falta de regulação do setor cripto e da dificuldade em identificar pessoas por trás de transações em blockchain (a tecnologia das criptomoedas) para lavar dinheiro e realizar evasão de divisas por meio de ativos digitais via OTCs.

Essas empresas têm CNPJs e cadastro nas respectivas Juntas Comerciais e, por isso, devem reportar transações para a Receita Federal. Para não chamar a atenção das autoridades, os criminosos pulverizam as movimentações de USDT em diversas empresas de fachada usando nomes de laranjas. O resultado é uma rede de empresas que, individualmente, não acendem os alertas dos auditores federais – mas, na verdade, movimentam valores de uma só entidade.

A RFB não informa a natureza dos negócios por trás dos 61.257 CNPJs que aparecem no relatório mais recente de declaração de criptoativos. Por isso, não é possível precisar quantos deles são OTCs de fato e quantas são “fantasmas”. Segundo pessoas que atuam nesse mercado, no entanto, pelo menos 200 OTCs declaram movimentações para a Receita, mas o número real de empresas em atividade pode ser quatro vezes menor.

O que são OTCs – e por que as fraudes se alastram nelas

Comuns no mercado financeiro, as OTCs intermediam negociações para clientes que desejam transacionar valores altos sem ter a compra ou a venda afetadas pelo preço de mercado. Em geral, operam segundo um valor pré-combinado, deixando a transação mais barata. No mundo cripto, que é menor e muito volátil, as OTCs são ainda mais necessárias.

“Se eu recebo uma demanda de um cliente para liquidação de cerca de 400 bitcoins, não posso jogar dentro de um livro de oferta sem mover nada do preço. Então existe um fluxo de OTC para esse tipo de transação não afetar o mercado”, explica Carlos Lain, CEO da PagCripto, uma reconhecida OTC de Caixas do Sul, no Rio Grande do Sul, que também opera como exchange de varejo.

No universo dos criptoativos, no entanto, quem movimenta mais as OTCs são intermediadores, como os formadores de mercado (market makers). Eles ajudam a gerar liquidez dentro de corretoras de criptomoedas, comprando e vendendo ativos e ganhando no volume. No mercado financeiro tradicional, essa função pode ser exercida por bancos e corretoras.

“Os grandes market makers [em cripto] ou são OTCs ou compram de OTCs. Então, ou ele faz parte diretamente de quem atende grandes volumes ou compra de quem atende esse volume, porque é a OTC que possui acessos para conseguir tal liquidez”, conta Lain.

OTCs têm controles de compliance como corretoras comuns, com processos de verificação de identidade e reportes para autoridades. Mas, parte disso é voluntário, já que a atuação de empresas do setor cripto não é completamente regulada no Brasil. Dessa forma, enquanto OTCs sérias conseguem ter algum controle sobre o dinheiro usado nas transações, alguns players se aproveitam da falta de clareza regulatória para cometer crimes.

O que é a Tether (USDT) — e por que ela é a preferida para remessas ilegais

A Tether (código USDT) é uma stablecoin (criptomoeda estável) que tem paridade com o dólar americano. Ela é a maior do seu tipo e a terceira maior cripto do mundo, apenas atrás de Bitcoin e Ethereum (ETH), avaliada em US$ 83,2 bilhões (R$ 410 bilhões).

O criptoativo foi criado e tem emissão controlada por uma empresa de mesmo nome pertencente à Ifinex, holding baseada em Hong Kong, também dona da exchange Bitfinex. Assim como outras empresas do ramo, a Tether não tem sede física em nenhum país do mundo. Com isso, não é submetida às mesmas pressões regulatórias que stablecoins rivais.

A USD Coin (USDC), considerada a cripto indexada ao dólar mais regulamentada do mundo, passou a enfrentar ofensivas de reguladores nos EUA. A Binance Coin (BUSD), emitida pela Paxos, regulada em Nova York, teve emissão interrompida em fevereiro por pressão da SEC, a Comissão de Valores Mobiliários americana. Na segunda-feira (5), a SEC processou a Binance por infrações da lei de securities.

Fonte: Receita Federal

A USDT também se vale da agilidade e flexibilidade dos criptoativos, que são menos passíveis aos controles das autoridades e das instituições financeiras.

“Você não tem livre disponibilidade do dinheiro que tem na conta bancária, há controles como comunicação prévia de saque, limites de valor para saque em espécie e transferências. Nos criptoativos, que têm transmissão direta entre as partes, é possível movimentar livremente, independentemente de horário e de valor”, explica Thiago Bueno, Procurador do Ministério Público Federal no Amazonas e integrante do Grupo de Crimes Cibernéticos do MPF.

“Isso traz uma potencialidade de movimentação de valores em cifras muito altas, já que não tem nenhum tipo de trava do sistema para bloquear”, conta o procurador. “Em cerca de 10 minutos, as transferências [de Bitcoin] são inscritas na blockchain, confirmadas e efetivamente realizadas. Então, em 10 minutos, hoje é possível fazer transferência com alcance global”. Com a USDT, as transferências são confirmadas em questão de segundos em alguns casos.

A falta de regramento específico do Banco Central para dólares digitais como a USDT também favorece o criminoso. Como operações com esses ativos nem sempre representam operações de câmbio (por exemplo, dentro de uma corretora para negociar Bitcoin), fica a cargo do usuário fazer a declaração proativamente, recolhendo IOF de 0,38%.

A medida, no entanto, é uma precaução adotada por especialistas a partir da interpretação da Circular 31379/2017 do BC, como forma de evitar cobranças da autarquia.

“Não é um assunto trivial. É o assunto mais complexo que a gente lida na organização de negócios, principalmente quando envolve negócios com outros países. Meio mundo discute esse assunto”, afirma a advogada especialista em blockchain Emilia Malgueiro Campos.

O ambiente regulatório cinzento em torno das stablecoins também abre espaço para investidores fugirem de impostos que ainda nem existem, como a taxação para investimentos no exterior prevista pela Medida Provisória 1171/2023, que pode passar a valer a partir de 2024.

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Paulo Alves

Editor de Criptomoedas